Liquidação de sentença na prática: Ação revisional bancária de financiamento de veículo
- Eduardo de Lima Barbosa
- 7 de jul. de 2023
- 10 min de leitura
Neste post utilizamos dados reais de uma ação revisional de contrato bancário. Porém, em respeito à LGPD, omitimos dados pessoais e outros que possam identificar as partes e terceiros envolvidos no processo.
A) Dos dados e trâmite da ação revisional bancária:
O objetivo deste post é demonstrar todas as fases na elaboração de cálculo de liquidação de sentença numa ação revisional de contrato bancário c/c repetição de indébito 'com pedido de tutela antecipada de urgência, distribuída em 10/08/2020, julgada em 25/05/2023 por uma das Câmaras de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, que negou provimento ao recurso da parte ré.
Basicamente, a parte autora alegou que "num efeito de 'bola de neve', a dívida alcançou patamar insustentável."
Que a taxa de juros aplicada pela parte ré na CCB, de 3,38% a.m., não corresponde com a taxa média divulgada pelo Banco Central do Brasil à época da operação, que foi de 1,51% a.m..
A parte autora juntou parecer técnico que demonstraria o valor a ser pago, destacando que o valor da obrigação ajustada na CCB é R$ 791,49; que o valor controverso estimado da parcela seria de R$ 236,26 e, finalmente, que o valor incontroverso estimado da parcela seria de R$ 555,23, conforme quatro resumo abaixo:

O parecer técnico da parte autora apontou encargos indevidos (venda casada) no valor de R$ 1.588,24, composto por: R$ 200,00 de assistência de serviços; R$ 300,00 de tarifa de cadastro e R$ 1.088,24 de seguro prestamista.
Destaca referido parecer técnico que o "recálculo das prestações foram efetuados com base na exclusão das cobranças de taxas e tarifas abusivas traduzindo a redução do custo efetivo total, onde o valor financiado reduzido, consequentemente reduziu o valor das prestações sem alteração das condições contratuais." Todavia, mais adiante, demonstrar-se-á que o recálculo nesse parecer apenas substituiu a taxa de juros contratada de 3,38% a.m. pela taxa média de mercado publicada pelo BACEN (1,51% a.m), não ocorreu exclusão de supostas tarifas abusivas (encargos indevidos).
Na petição inicial abriu-se um tópico "das tarifas tidas como ilegais - venda casada": R$ 200,00 de assistência de serviços e R$ 1.088,24 de seguro prestamista. E, ainda, acrescentou-se tópico sobre suposta abusividade da taxa de cadastro no valor de R$ 300,00.
Todavia, ao elaborar os pedidos, a parte autora limitou-se a requerer, no mérito, a procedência do pedido no sentido de revisar as "taxas de juros remuneratórios mensal e anual aplicadas aos contratos de financiamento firmado entre a parte demandada e a parte demandante, limitando-as às taxas médias de mercados apuradas pelo Banco Central do Brasil à época das respectivas contratações [...]." (destaque nosso)
E, consequentemente, que "seja a parte demandada condenada a restituir a parte demandante os valores cobrados em excesso face à incidência de juros remuneratórios abusivos, cujo montante será apurado em sede de liquidação de sentença após a definição da taxa de juros a ser efetivamente aplicada aos contratos de aquisição de veículos;" (destaque nosso)
As condições da contratação estão descritas na CCB, a saber:


O A.R. positivo da citação foi juntado nos autos em 29/09/2020.
Em 02/10/2020, a parte ré contestou a ação e informou nos autos que a parte autora, até àquela data, teria pago três parcelas do financiamento:

Outrossim, 5 (cinco) parcelas estavam vencidas:

E, finalmente, 40 (quarenta) parcelas a vencer:


No dia 24/02/2023, o juiz de 1ª instância julgou procedente o pedido formulado na inicial, nos termos do art. 487, I, do CPC, reconhecendo a abusividade das taxas praticadas e determinou que se proceda a adequação do contrato a taxa de 1,51% ao mês, limitada a 19,73% ao ano, condenando a parte ré a recalcular o valor das parcelas eventualmente pendentes e a restituição da quantia dos valores já pagos, de forma simples, acrescida de correção monetária pelos índices da tabela prática do E. TJSP a contar do desembolso e de juros de mora de 1% ao mês a contar da citação. Sucumbente a parte ré, arcará com as custas e despesas processuais, bem como com os honorários advocatícios os quais foram fixados em 10% do valor da causa. A sentença foi publicada no DJe em 01/03/2023.
A parte ré interpôs recurso de apelação, que foi contrarrazoado pela parte autora.
Em maio de 2023, foi negado provimento ao recurso, por votação unânime, Segue a ementa:
APELAÇÃO - Ação revisional de contrato bancário de financiamento de veículo - Sentença de parcial procedência - Relação de consumo - Súmula 297 do STJ;
TAXA DE JUROS - Abusividade comprovada in casu - Matéria objeto do Recurso Especial Repetitivo nº 1.061.530/RS - Necessidade de revisão dos índices, tal como decidido, que deverão adotar a taxa média divulgada pelo BACEN, no período de contratação;
SENTENÇA MANTIDA - RECURSO DESPROVIDO.
O v. acórdão transitou em julgado em 22/06/2023.
Até a elaboração deste post não se iniciou a fase de liquidação de sentença nos autos do processo original.
Não obstante, o objetivo deste post é demonstrar a prática da liquidação de sentença nesta espécie de ação revisional e, de forma didática, oferecer instrumentos aos operadores do direito para melhor compreensão da matéria.
O autor deste post, muitas vezes é procurado como calculista por colegas advogados com a seguinte indagação: "Você faz cálculo de juros abusivos para revisão de contratos de financiamentos?"
Não há, propriamente dito, conceito legal de "juros abusivos", existe construção jurisprudencial e doutrinária sobre o tema.
Portanto, na fase pré-processual, os fatos a serem analisados pelos advogados e assistentes técnicos são: verificar a taxa de juros mensal contratada e a efetivamente aplicada na CCB; se as tarifas, despesas e encargos contratuais obedeceram os parâmetros legais, as teses fixadas pelo Superior Tribunal de Justiça em recursos repetitivos e a jurisprudência dos tribunais locais sobre questões ainda não decididas pela sistemática dos recursos repetitivos; se há informação sobre o sistema de amortização utilizado e, excepcionalmente, se há possibilidade de substituí-lo por outro sistema, etc. Enfim, uma ação revisional bancária não se resume a desenvolver tese sobre a abusividade de juros, até porque, essa questão pode não ser a melhor estratégia no caso concreto.
Assim, em resposta à indagação supramencionada, respondo aos colegas que faço a análise dos contratos e operações financeiras, a elaboração dos cálculos e parecer técnico visando apurar eventual prática abusiva por parte da instituição financeira.
B) Dos cálculos de liquidação da sentença:
Os cálculos de liquidação serão realizados com atualização monetária e juros moratórios calculados para o dia 23/06/2023 obedecendo os parâmetros fixados na sentença.
Segue a síntese do contrato pactuado:

O cálculo do contrato bancário, de acordo com a instituição financeira (parte ré), utilizando o Sistema de Amortização Price para o financiamento de R$ 18.861,08 em 48 parcelas, cada uma no valor de R$ 791,49, é o seguinte:

Podemos observar que a taxa de juros calculada e aplicada neste financiamento, para parcela mensal de R$ 791,49, não é de 3,38% a.m., constante da CCB, mas sim, 3,322% a.m. (39,867960% a.a. nominal / 48,023373% a.a. efetiva), vejamos:

Recalculando o contrato e respectivas parcelas, utilizando o Sistema de Amortização Price, para o financiamento dos R$ 18.861,08, em 48 parcelas mensais, com taxa de juros de 1,51% a.m. fixada na sentença, obtém-se o valor da parcela mensal recalculada de R$ 555,23, a saber:

A parte autora teria efetuado pagamentos de 3 (três) parcelas, que foram noticiados na contestação e não foram impugnados. Portanto, o cálculo de atualização dos valores pagos a maior até o último pagamento é de R$ 1.182,00 (crédito a favor da parte autora), vejamos:

Até 23/06/2023, há 38 (trinta e oito) parcelas em atraso devidas pela parte autora à instituição financeira (parte ré), com acréscimos dos encargos contratuais legais (1% de juros de mora a.m. e 2% de multa) e correção monetária, totalizando R$ 28.530,23:


Além disso, há sete (7) parcelas a vencer que, se considerarmos a data base para quitação antecipada 23/06/2023, o valor devido dessas parcelas pela parte autora à parte ré é de R$ 3.662,09:

E, finalmente, os honorários advocatícios fixados pelo Juízo, devidos ao advogado da parte autora, atualizados são de R$ 3.233,00:

Em resumo, após o recalculo das parcelas do contrato determinado pelo D. Juízo, aplicando a taxa média do Banco Central de 1,51% a.m. e considerando os pagamentos efetuados pela parte autora e, ainda, as parcelas vencidas e vincendas do contrato de financiamento até 23/06/2023, resta o valor devido em favor da instituição financeira de R$ 27.777,32, conforme resumo abaixo:

É possível recalcular a renegociação deste saldo devedor, no valor de R$ 27.777,32, utilizando a Tabela Price, prestações fixas em 45 parcelas, já que foram pagas 3 (três) parcelas, com taxa de juros de 1,51 a.m., fixada pelo Juiz. Todavia, a parte autora não fez pedido nesse sentido.
Em regra, para subsidiar o advogado da parte autora, é recomendável que se faça referido cálculo da renegociação da dívida no parecer técnico a ser entregue ao advogado da parte autora, para que possa subsidiar a formulação desse pedido.
Como neste post estamos tratando da liquidação de sentença, restringiremos o cálculo à liquidação propriamente dita. Publicaremos em outro post como ficaria a dívida (saldo devedor) se renegociada nos parâmetros estabelecidos pela sentença.
C) Considerações gerais sobre revisão de contratos bancários e cuidados na contratação e interpretação de parecer técnico:
Esta parte do post não está relacionada, diretamente, com o resultado da liquidação de sentença que realizados do processo original.
Pode servir de exercício para dominar ou aprimorar as questões que envolvem a revisão contratual bancária e seus cálculos.
E, também servirá para demonstrar equívocos adotados no parecer técnico ofertado pela parte autora no processo original.
Manteremos as premissas estabelecidas no parecer técnico, recalculando o valor da parcela do financiamento substituindo a taxa de juros mensal por 1,51% e excluindo do valor financiado as tarifas tidas como abusivas.
Como salientado no item anterior, o parecer técnico da parte autora apontou como encargos indevidos o valor de R$ 1.588,24 (R$ 200,00 de assistência de serviços; R$ 300,00 de tarifa de cadastro e R$ 1.088,24 de seguro prestamista).
Com relação às tarifas, é importante analisar o caso concreto e, principalmente, respeitar a tese firmada pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial nº 1.578.526/SP (Tema Repetitivo 958/STJ) e no Recurso Especial nº 1.639.320/SP (Tema Repetitivo 972/STJ) que, salvo melhor juízo, no parecer técnico da parte autora não foi adequadamente respeitado ao analisarmos os esclarecimentos da questão das tarifas no caso concreto. É relevante o advogado conhecer ambas as teses firmadas nestes Recursos Especiais Repetitivos.
Deixada de lado a questão do entendimento jurisprudencial, a leitura do parecer técnico acostado aos autos, leva-nos a concluir que o "recálculo das prestações foram efetuados com base na exclusão das cobranças de taxas e tarifas abusivas traduzindo a redução do custo efetivo total, onde o valor financiado reduzido, consequentemente reduziu o valor das prestações sem alteração das condições contratuais."
Infelizmente, o parecer técnico não foi acompanhado das respectivas memórias de cálculos. Cingiu-se a anexar planilha sob o título "PARECER TÉCNICO SOBRE RECALCULO DAS PARCELAS DE CONTRATO DE FINANCIAMENTO DE VEÍCULO", que foi reproduzida no item "A" deste artigo.
O questionamentos que se faz é: O recálculo do financiamento mencionado no parecer técnico da parte autora, de fato, excluiu as tarifas que considerou abusivas para obtenção da nova parcela mensal no valor de R$ 555,23 ou apenas substituiu a taxa mensal de juros contratada de 3,38% pela taxa de juros média informada pelo BACEN e fixada pelo Juízo de 1,51% a.m.?
A resposta é: Foi substituída apenas a taxa de juros para 1,51% a.m. para obtenção da parcela mensal no valor de R$ 555,23. Caso tivessem sido excluídas as tarifas consideradas abusivas mencionadas no parecer técnico da parte autora (R$ 200,00 de assistência de serviços; R$ 300,00 de tarifa de cadastro e R$ 1.088,24 de seguro prestamista), no recálculo o valor da nova parcela mensal seria de R$ 508,47:

Caso o advogado da parte autora tivesse feito pedidos para exclusões das tarifas tidas por abusivas, mencionadas no seu parecer técnico contratado, no recálculo da nova parcela mensal do financiamento mediante substituição da taxa de juros mensal contratada na CCB pela taxa média de juros mensal informada pelo BACEN (1,51%) e, ainda, hipoteticamente, o D. Juízo de 1º grau tivesse julgado procedente todos os pedidos na ação, o contexto seria mais favorável a parte autora, como será demonstrado adiante.
Nesse novo cenário, com o pagamento das 3 (três) parcelas da parte autora, noticiados na contestação, o cálculo de atualização dos valores pagos a maior até o último pagamento seria de R$ 1.415,91 (crédito a favor da parte autora) e não de R$ 1.182,00:

Outrossim, até 23/06/2023, as 38 (trinta e oito) parcelas em atraso devidas pela parte autora à instituição financeira (parte ré), com acréscimos dos encargos contratuais legais (1% de juros de mora a.m. e 2% de multa) e correção monetária, não totalizariam R$ 28.530,23, mas sim, R$ 26.127,78, vejamos:


Demais, as 7 parcelas a vencer, considerando a data base para quitação antecipada 23/06/2023, o valor devido dessas parcelas pela parte autora à parte ré não seria de R$ 3.662,09, mas sim, R$ 3.353,71:

O valor dos honorários advocatícios não sofreria alteração, já que a sentença fixou-os em percentual sobre o valor da causa atualizado.
E, finalmente, após o recalculo das parcelas do contrato, aplicando a taxa média do Banco Central de 1,51% a.m. e excluindo-se do financiamento as tarifas abusivas (se reconhecidas pelo Juízo) e considerando os pagamentos efetuados pela parte autora, as parcelas vencidas e vincendas do contrato de financiamento, até 23/06/2023 restaria o valor devido em favor da instituição financeira de R$ 24.832,59, conforme resumo abaixo:

Em suma, ocorreria redução no saldo devido em favor da instituição financeira de R$ 27.777,32 para R$ 24.832,59. Ou seja, resultaria para a parte autora economia de R$ 2.944,73 (10,601203%).
D) Conclusão:
Este post não tem a pretensão de esgotar as questões que envolvem a matéria sobre revisões de contratos bancários.
Visa contribuir com a reflexão e experiência adquirida pelo autor do post no desempenho de suas atividades de advogado e calculista, abordando questões reiteradas discutidas e decididas nas ações judiciais, sem arrogar para si a verdade absoluta, até porque, a travessia do aprendizado é constante e árdua, conquistada não só por acertos, mas, principalmente, pelos erros cometidos ao longo da jornada.
Nesse contexto, entendemos que é importante que o advogado da parte, quer seja do autor ou do réu, mesmo que munido de parecer técnico, tenha conhecimentos gerais de matemática e, em específico, matemática financeira, para advogar com proficiência nas ações revisionais bancárias, para credenciá-lo a interpretar adequada e corretamente o parecer técnico contratado e, eventualmente, identificar equívocos que possam ter sido cometidos no parecer técnico pelo expert.
Por outro lado, cogitamos que o calculista e/ou assistente técnico, além de dominarem as técnicas de elaboração dos cálculos matemático financeiros, necessitam conhecer e compreender: as teses já fixadas pelo Superior Tribunal de Justiça em recursos repetitivos sobre as questões bancárias; as súmulas do STF e STJ aplicáveis ao caso concreto e; a jurisprudência local dos tribunais naquelas questões nas quais ainda não foram fixadas teses em recursos repetitivos. E, em acréscimo, sempre atualizarem-se mediante doutrina proficiente sobre questões revisionais bancárias.
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